terça-feira, 19 de março de 2013




Depois do concurso para a fabricação do irmão de Pinóquio, houve no sítio de dona Benta outro concurso muito engraçado – o concurso de “quem tem a melhor idéia”. Quem venceu foi a Emília, com a sua estupenda idéia de um “círculo de escavalinho”. Dona Benta, que era o juiz do concurso, achou muito boa a lembrança, mas deu risada do título.
— Não é “círculo”, Emília, nem “escavalinho”. É circo de cavalinhos.

— Mas toda gente diz assim — retorquiu a teimosa criaturinha.

— Está muito enganada. Eu também sou gente e não digo assim.

O Visconde, que está quase virando gente, também não diz assim.

Emília teimou, teimou, e por fim acabou aceitando só metade da emenda.

— Já que a senhora “faz tanta questão”, fica sendo circo de escavalinho.

Dona Benta ainda insistia, dizendo que o diminutivo de cavalo é cavalinho e que portanto escavalinho era asneira. Mas a boneca não se deu por vencida.

— É que a senhora não está compreendendo a minha idéia — explicou. — Escavalinho é o nome do diretor do circo, o célebre Senhor Pedro Malasarte Escavalinho da Silva, está entendendo?

Dona Benta riu-se da esperteza, mas Pedrinho gostou da idéia e aceitou que o circo teria o nome inventado pela boneca. Em vista disso começaram os três a formular planos e a distribuir papéis.

Emília seria a dama que corre no cavalo e pula os arcos. João Faz-de-conta seria o homem que engole espada e come fogo. E palhaço?

Estava faltando justamente o principal, que era o palhaço.

— O Visconde daria um bom palhaço, se não fosse a sua mania de ciência; mas creio que podemos curá-lo. Vou chamar o doutor Caramujo.

— Acho boa a idéia — concordou Narizinho. — Além disso…

Mas não pôde concluir. Rompera um bate-boca na cozinha, no qual se ouvia a voz de tia Nastácia gritando:

“Puxe daqui pra fora”! Os meninos correram a ver do que se tratava e encontraram-na tocando o Visconde com o cabo da vassoura.

— Que é? Que foi?

— Pois é este senhor Visconde que está me bobeando — explicou a negra. — Eu aqui bem quieta escamando estes lambaris para o almoço, e o “estrupício” aparece de livrinho na mão e começa a mangar comigo, com uma história de “seno” e “co-seno” e não sei que história de “mangaritmos”. Eu estou cansada de dizer que não sei inglês, mas o diabo parece que não acredita…

— “Mangaritmos!” — exclamou o Visconde erguendo os braços para o céu — e plaf! caiu por terra com o ataque.

Narizinho correu a socorrê-lo e levou-o para a casinha dele, onde o acomodou dentro da lata que lhe servia de cama. Depois gritou:

— Depressa, Pedrinho. Mande Rabicó chamar o doutor Caramujo. O nosso Visconde está muito mal.

A casa do Visconde era um vão de armário na sala de jantar. Dois grossos volumes do Dicionário de Morais formavam as paredes. Servia de mesa um livro de capa de couro chamado O Banquete, escrito por um tal Platão que viveu antigamente na Grécia e devia ter sido um grande guloso. A cama era formada por um exemplar da Enciclopédia do Riso e da Galhofa, livro muito antigo e danado para dar sono. Mas desde que o Visconde ficou uma semana inteira atrás da estante e criou bolor pelo corpo inteiro, não era ali que ele dormia, para não sujar o chão com o seu pozinho verde; dormia na lata. Outros “móveis” — armarinhos, cadeiras, estantes, também eram formados dos livros de capa de couro, que dona Benta havia herdado de um seu tio, o Cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira. Era naquela casinha que o Visconde passava a maior parte do tempo, lendo, lendo que não acabava mais. E tanto leu que empanturrou.

Rabicó fora chamar o médico. Meia hora depois chegava o célebre doutor Caramujo, afobadíssimo, de malinha debaixo do braço.

— Quem é o doente? — foi logo indagando.

— É o senhor Visconde de Sabugosa, que teve hoje um ataque. Venha vê-lo, doutor.

O médico dirigiu-se para a lata do Visconde, examinou-o e franziu a testa.

— Hum! O caso é dos mais graves. Tenho de operá-lo imediatamente. Sua Excelência está empanturrado de Álgebra e outras ciências empanturrantes. Tragam-me uma bacia d’água, toalha e também uma pedra de amolar.

Pedrinho trouxe as coisas pedidas; o médico amolou na pedra a sua faquinha e abriu de alto a baixo a barriga do Visconde.

— Xi! — exclamou fazendo uma careta. Vejam como está este pobre ventre. Completamente entupido de corpos estranhos.

Pedrinho e Narizinho espiaram aquela barriga aberta e viram que em vez de tripas o Visconde só tinha uma maçaroca de letras e sinais algébricos, misturados com “senos” e “co-senos” e “logaritmos” — ou “mangaritmos”, como dizia a tia Nastácia.

— Coitado! — exclamaram ambos, compungidos. Está mesmo muito mal.

O doutor Caramujo tomou uma colherzinha e começou a tirar para fora toda aquela tranqueira científica, depositando-a num pequeno balde que Pedrinho segurava.

— Não tire todas as letras — advertiu o menino. Se não ele fica bobo demais. Deixe algumas para semente.

— É o que estou fazendo. Estou tirando só o que é Álgebra. Álgebra é pior que jabuticaba com caroço para entupir um freguês.

Terminada a operação, o doutor colou a barriga do doente com um pouco de cola-tudo.

— Temos agora de deixá-lo em repouso durante três dias — recomendou. Depois desse prazo poder dar seus passeios pelo campo, a fim de tomar sol e respirar as brisas da manhã. Também é preciso esconder quanto livro de Álgebra exista por aqui, para evitar recaída.

Pedrinho pediu a conta, pagou-a e despediu-se do doutor, recomendando-lhe que desse muitas lembranças ao príncipe Escamado, a dona Aranha e outros personagens do reino.

— Que bom médico! — exclamou a menina logo que o doutor Caramujo partiu. Com um doutor assim até dá gosto ficar doente. Mas estou notando que esquecemos duma coisa, Pedrinho.

— Que foi?

— Esquecemos de botar casos engraçados dentro da barriga do Visconde. Como vai ser palhaço de circo, ficaria ótimo se nós o recheássemos como tia Nastácia faz com os perus.

— Recheio de quê? — indagou o menino.

— De anedotas, por exemplo.

— Bem pensado! Mas ainda está em tempo, porque a cola não secou.

E abrindo de novo o Visconde, puseram dentro três páginas bem dobradinhas dum livro do Cornélio Pires Depois colocaram-no outra vez e deixaram-no a secar em paz.

— Venha ver, Emília, quanta letra saiu de dentro do coitado — disse a menina, indo ao quintal despejar o balde. — Eu bem digo que é muito perigoso ler certos livros, Os únicos que não fazem mal são os que têm diálogos e figuras engraçadas.

Passados os três dias de repouso, o Visconde pulou da sua lata e foi passear pelo terreiro, conduzido pela Emília, ainda muito fraco mas perfeitamente curado das suas manias.

— Agora sim — disse Pedrinho — nosso circo vai ter um palhaço ainda melhor que o tal Eduardo das Neves que tia Nastácia tanto gaba. Você, Narizinho, precisa fazer-lhe uma roupa bem pândega.

— Estou pensando em fazer-lhe uma roupa de palhaço de verdade, com um grande sol amarelo atrás.

— Pois vá cuidar do sol que eu vou organizar o programa da festa.

Dali a pouco o programa estava pronto — e que lindo!

— Está muito bom — aprovou a menina. — Só falta a música.

— Já pensei nisso e está difícil de resolver. Vovó não pode ser música, porque precisa ficar recebendo os convidados. Tia Nastácia também não pode, porque precisa ficar tomando conta das cocadas. Não sei como este para ser…

— Rabicó! — sugeriu a menina. — Rabicó pode ser música. Não é muito afinado, mas passa.

— Esse não; preciso dele para outra coisa. — e Pedrinho cochichou-lhe ao ouvido um segredo.

— Ótimo! — exclamou a menina batendo palmas. — Vai ser uma sensação! Acho que é a melhor idéia que você já teve, Pedrinho!

— Mas veja lá! Não diga nada a ninguém — nem à Emília, senão a coisa perde a graça.

E ainda cochicharam por vários minutos...